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Malva: O romance
que não se escreveu
Malva
é um romance cuja trama se desenrola numa cidade qualquer da imaginação ou da
lembrança. Sua autora, como demonstram os percalços do texto, é uma estreante
nas viagens de longo curso da ficção. O protagonista narrador, um jovem médico
que, despido da arrogância acadêmica, descobre o mundo de saber e humanidade da
gente simples e distanciada dos labirintos da aldeia global. Ele mesmo é uma
destas criaturas sábias que sabem ver e ouvir a natureza e uma das suas
criações mais complexas (ou mais complicadas): o homem.
A
leitura deste romance, apesar dos
pontos que ainda precisam ser trabalhados, revela desde já
alguém que traz em
si a sensibilidade necessária para contar as histórias
mais fundamente
guardadas na nossa alma. Dito isto, tornemos o exercício da
atividade crítica
útil não apenas ao leitor, mas também ao autor,
cujo envolvimento com o processo
de criação, quase sempre, impede o distanciamento e a
isenção necessários à análise
dos elementos que funcionam e daqueles que emperram o desempenho do
todo.
Ana Isabel forja uma trama de destinos
cruzados, onde os personagens Malva e Nardo, amantes no desencontro, são
reescritos na desdita pelo velho Gonçalo e por sua filha Maria Alecrim. Há
mesmo uma grandiosidade trágica nos enredados caminhos destes personagens, cuja
escrita de Ana Isabel não foi suficientemente trabalhada para dizê-los. Os
personagens crescem na fabulação desta romancista-estreante, mas seus recursos
narrativos, sua escritura, ainda não estão maduros para conter seu engenho criador.
Este livro ainda não está definitivamente escrito. O caráter experimental da
escrita de Ana Isabel Rocha Macedo precisa ser mais sedimentado para
estabelecer o necessário equilíbrio com a força da sua imaginação de criadora.
O caráter metalinguístico da narrativa
estabelece a substituição do narrador-protagonista pelo narrador-autor. Criador
e criatura dialogam no texto, numa evidente evocação a Pirandello. Mas este
diálogo precisa de mais naturalidade. Mesmo as tentativas que o
protagonista-narrador faz para se aproximar do leitor, envolvendo-o no processo
de construção da narrativa, se perdem no artifício, sem lograr refazer-se como
realidade alternativa. Diria mesmo que – ao invés de provocar o leitor com o
objetivo de atraí-lo para o interior da narrativa, tornando-o não mais um
espectador, mas uma criatura solidária, conforme pretende, – o narrador
consegue apenas chatear o leitor. Suas intervenções mais parecem uma birrinha
de comadres desocupadas. Este é um dos pontos que precisam ser resolvidos com
mais trabalho e inventividade.
Os personagens de Ana Isabel, às vezes,
falam como um professor de literatura, numa excessiva sistemática cartesiana do
pensamento. A autora usa aquilo que aprendeu
na condição de profissional do ensino na construção do seu romance. Mas a
escritora precisa expulsar a professora do seu mundo ficcional, ou precisa
escondê-la – convertê-la em figura da sua paisagem. O vocabulário do narrador
está contaminado pelo jargão do discurso acadêmico. Somente um chato, nos seus
momentos de viagem interior ou de amena conversa amiga, pensa e fala como um
intelectual diante da assembleia. Bem verdade que muita gente continua com a
alma engravatada nos seus momentos de prosear. Mas não é o caso dos personagens
de Ana Isabel. Eles são gente de outra lavra. É a linguagem que precisa ser
mais bem trabalhada, para ganhar a naturalidade da fala cotidiana ou do diálogo
romanesco bem urdido.
O registro linguístico dos personagens
do meio rural continua sendo representado neste romance com as caricatas marcas
ortográficas da chamada fala inculta. O “escrever errado” como forma de
representar o “falar errado” não tem nada de expressivo. Cabe ao autor marcar
criativamente a variação do dialeto dos seus personagens. Fazer uma espécie de
transcrição fonética estropiada é apenas repetir um lugar comum.
A inserção de um vocábulo aqui e de
outro ali, marcando a diferença da fala, ora pela ortografia, ora pela
morfologia ou pela sintaxe, pode ser mais “artística” ou mais verossímil. A
arte não precisa arremedar a natureza, mas imitar alguns dos seus aspectos mais
relevantes, sem permitir que a repetição do artifício se torne mecânica e inexpressiva.
Ainda com relação às muletas do
narrador, o texto cresceria se expurgasse os recursos que não funcionam, mas
servem apenas para entulhar a escrita. Da página 79, por exemplo, colhemos um
destes montinhos de lixo que podem ser varridos da luminosa cidade que Ana
Isabel nos oferta. Vejamos: “Enfim, voltando ao fio temático do que eu estava
narrando, e, falando sério...” Ora, professor de literatura, ensaísta, crítico
literário, filósofo cartesiano e soldado de polícia podem falar assim. Mas o
texto literário no seu equilíbrio e na sua límpida economia não precisa destas
muletas para andar. Ele anda pelas pernas da imaginação e dos imprevistos
recursos.
Por fim, a retirada do narrador na
página 104 não tem a força exigida pela situação engendrada. O caricato “aviso”
que marca a substituição do narrador-protagonista pelo narrador-autora retira
todo encanto do recurso. Esta passagem não precisa ser alardeada com tantos
alto-falantes. Aliás, ao longo da narrativa se anuncia a fuga do narrador. O
seu silêncio enquanto narrador e enquanto personagem encarregado de redigir o
atestado de óbito do personagem-motivo, o velho Gonçalo, poderia por si mesmo
falar mais alto do que as inúteis páginas 104 e 105. Aquilo que Bakhtin chamou
de dialogismo em Dostoievski, ou, simplificando, a mudança de linguagem,
marcaria a substituição do narrador.
Não conclua o leitor que a enumeração
de pontos vulneráveis do livro diminui o mérito da autora. Pelo contrário, o
rigor do olhar decorre da seriedade atribuída ao objeto. Cremos, portanto, que
o potencial criador de Ana Isabel Macedo fará deste primeiro exercício de
escrita o caminho para o romance que não se escreveu e continua pedindo para
ser escrito. O reinventar é tarefa do artista.
___________________
O
romance que não se escreveu. Artigo crítico sobre o livro Malva, de Ana Isabel Rocha Macedo. Belo Horizonte, UESB, 1995, 108
p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A
Tarde, Salvador, 10 jul. 95, p. 5.
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