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Literatura
Luso-Brasileira
Apesar dos pontos comuns que ligam a
literatura brasileira e a portuguesa, poucas são as publicações que estimulam
estas interrelações. A revista Qvinto
Império, fundada em 1986, sob a inspiração do antigo catedrático de
Literatura Portuguesa da UFBA, Dr. Hélio Simões, e publicada sob os auspícios
do Gabinete Português de Leitura, então presidido pelo Comendador António
Carvalho de Araújo, representa um importante elo a ser mantido.
Agora, sob a direção de José Carlos
Sant’Anna, sai o número quatro da revista, reunindo textos de alta qualidade.
Composta de três seções distintas, uma com artigos, outra com contos e uma
terceira com poemas, Qvinto Império
retoma neste número a qualidade inicial das publicações. Os artigos são
preponderantemente de autores baianos, assegurando a divulgação da nossa
produção acadêmica, embora traga importantes colaboradores de outros estados e
países, notadamente de Portugal.
O tema central deste número é
constituído pela vida e obra de Florbela Espanca, reunindo as conferências
pronunciadas pelas professoras Mª Aparecida Santilli, da USP, Mª Lúcia dal Farra,
da UFSE, e Luisa Coelho, da Universidade de Ultrecht (Holanda). Os temas
portugueses estão ainda contemplados nos artigos de Eneida Cunha, sobre a Carta
de Caminha, de José Carlos Sant’Anna, enfocando a narrativa de Cardoso Pires, e
de Vasco Graça Moura, sobre Camões e os descobrimentos. Os estudos comparados luso-brasileiros
ganham destaque no ensaio de Jorge Araújo destacando a matriz camoniana em
Bento Teixeira, e no texto de Fátima Brito sobre Borges e Camões. Mário Vilela
comparece com um artigo tratando do relativismo das cores nas culturas
românicas. No âmbito da cultura brasileira temos um panorama crítico do
tropicalismo, de Mirella Márcia, e uma crônica de Remy de Souza sobre a cediça
moral brasileira. Como se vê, predominam os temas portugueses ou os
luso-brasileiros.
Creio que o forte deste número de Qvinto Império são os textos literários
da mais alta qualidade, merecendo destaque tanto os contos quanto os poemas.
Raramente uma publicação desta natureza tem a feliz oportunidade de reunir bons
textos de criação, permitindo a homogeneidade da seleção.
O conto de Hélio Pólvora “A guerra dos
foguetes machos” permite ao leitor entrar em contato com um mestre da narrativa
de ficção. Escritor maduro e plenamente assenhorado do seu ofício, Hélio Pólvora,
além de proporcionar o prazer de um conto vivo e atraente, dá uma verdadeira
aula de domínio da linguagem. Valendo-se de um artifício, o estilo da escritura
de um tabelião, o narrador atesta o poder e a técnica de Pólvora. Mesmo
submetendo o foco narrativo aos limites de um discurso artisticamente
cartorial, o autor consegue manter intacta a objetividade e a força do dizer,
enriquecidas pelas sugestões do seu universo criador.
O conto “A adolescente”, de Judith
Grossmann, tem um ponto em comum com o de Hélio Pólvora: o jogo de
experimentação da linguagem. Aqui, o engenho e a arte da autora dividem a
palavra entre um narrador inicial, que logo é tirado de cena pelo protagonista,
e a sua personagem central. Ao anunciar que toma “de empréstimo a palavra do
narrador”, a personagem conta na primeira pessoa as suas desandanças de moça
humilde do interior. O curioso é que o artifício mágico (metáfora
técnico-narrativa do deus ex-machina)
contamina a esperada linguagem simples da personagem pela instigante linguagem
do narrador. Assim, a espantosa fluência da adolescente é justificada por um
bem sucedido artifício desta inventora de linguagens que é Judith Grossmann.
Partilhando caminhos diversos e impartilháveis, tanto Hélio Pólvora quanto
Judith Grossmann contam histórias que nos ensinam como contar histórias. Dois
contos diversos com um forte elo de ligação – a qualidade.
A seção de poesia é aberta pela
inventividade das quatro páginas de um poema de Luiz Angélico da Costa.
Brincando com as ressonâncias de vozes, o discurso intertextual revela um poeta
criativo na pessoa do tradutor e professor de línguas. O premiado poeta Ruy
Espinheira Filho reafirma o encanto da sua poesia e Ildásio Tavares dá-nos
lição de construção do soneto. O jogo intertextual também presente no poema de
Luiz Angélico perpassa os seis sonetos de Ildásio Tavares. Por fim, a dicção de
Mª da Conceição Paranhos, poeta culta, precede a voz portuguesa de Cassimiro de
Brito, que nos proporciona um encontro com Pessoa no Martinho da Arcada.
O comentário panorâmico sobre os textos
da revista é evidentemente superficial, mas atesta a qualidade desta
publicação.
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Literatura
luso-brasileira. Artigo crítico sobre o nº 4 da revista Qvinto Império, de José Carlos Sant’Anna et alii. Salvador, nº
4, Primeiro Semestre de 1995, 208 p.
Coluna “Leitura Crítica” do jornal A
Tarde, Salvador, 19 jun. 95, p. 7.
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