Entre a ficção
e a ciência
Por volta de 1860 Júlio Verne escreveu
um romance, ou, mais precisamente, uma novela, intitulada Paris no Século XX, que ficou inédita até há pouco tempo atrás,
quando o manuscrito foi localizado num velho cofre da família. Bem verdade que
o título do livro estava catalogado desde a morte do autor, em 1905, quando seu
filho Michel Verne fez publicar na imprensa a lista de obras inéditas deixadas
pelo pai.
Supunha-se, inclusive, que esta obra
não tivesse passado de um projeto não escrito, apenas idealizado, mas em 1986
os herdeiros do editor de Júlio Verne encontraram o rascunho de uma carta onde
este informava ao escritor a decisão de não publicar Paris no Século XX. Hetzel foi o único editor parisiense que
aceitou publicar Cinco semanas em balão,
vislumbrando o interesse que a obra despertaria. Assim, Júlio Verne enviou para
ele os originais deste seu livro anterior, sem conseguir êxito.
Paris
no Século XX é, de fato, uma obra sem a força de outros livros do autor,
talvez pelo fato se tratar de uma experiência literária da juventude. Se nas
cem primeiras páginas do livro ele consegue estabelecer um panorama
premonitório do ambiente cultural do século XX, a narrativa não logra manter
aceso o interesse do leitor por estes fatos. Bem verdade que Verne tenta
fascinar aos seus contemporâneos com inventos fantásticos, mas ele se debruça
principalmente sobre as preferências intelectuais do Século XX.
_________________________________
“Meu filho, a França perdeu
sua verdadeira superioridade;
suas mulheres,
no delicioso século de Luiz XV,
haviam afeminado os homens;
de lá para cá passaram
para o gênero masculino
e já não valem o olhar de um artista
nem a atenção de um amante!”
______________________________________
O livro mostra uma cidade gerenciada
por máquinas que fazem cálculos sozinhas, onde os homens podem se comunicar
entre si e fechar contratos de negócios a milhares de quilômetros de distância.
O navio Leviatã IV é um colosso tecnológico, onde se vive como numa cidade:
além do conforto, seu imenso convés contém alamedas gramadas e arborizadas,
onde damas e cavalheiros passeiam ao entardecer. Os trens urbanos, movidos a
ar, deslizam em velocidades fabulosas sobre pontes que parecem sobrevoar a
cidade.
Mas a invenção de Júlio Verne não é um
desvario dos sentidos. O autor fica atento aos avanços da ciência e da técnica
para projetar a aplicação das descobertas à vida quotidiana. A chamada
telegrafia fotográfica inventada por Casselli, no Século XIX, serviu para Verne
descrever os negócios do século XX como sendo comandados através de máquinas que
permitiam enviar “fac-simile de toda escrita, autógrafo ou desenho, e que se
assinassem letras de câmbio ou contratos a cinco mil léguas de distância.” A
criação de motores é aproveitada por ele para imaginar carros, automovidos,
transportando pessoas pelas ruas de Paris.
A propósito, vale transcrever o que diz
Véronique Bedin, editora francesa deste livro de Júlio Verne: “Sua força vem
precisamente de saber nunca jamais inventar, mas considerar o real com uma
atenção aguda, quase hipnótica, até obrigá-lo a entregar seu segredo e revelar
seus possíveis.”
Em meio a este bazar de coisas
surpreendentes Verne projeta o Século XX como um paraíso da tecnologia. As
ciências humanas, as artes ou a literatura não mais encontram lugar numa época
dominada pela eficiência das máquinas. Nas escolas, “apenas os estudos
científicos causavam acúmulo de candidatos aos exames”. As engenharias suprem
todas as necessidades imagináveis. As cadeiras de Letras são suprimidas na segunda
metade do século XX e seus professores desempregados. Os jornais também suprimem
as seções literárias e circulam apenas com relatórios de negócios. Ninguém mais
lê os poetas e prosadores “pela inquestionável razão de que os escritores
haviam ficado mais numerosos do que os leitores”. Nas bibliotecas ninguém
conhece autores como Victor Hugo ou Rabelais. Os novos poemas e romances têm
como tema o átomo ou o cálculo estrutural.
Os costumes também não escapam à
observação do autor, através dos seus personagens: “Meu filho, a França perdeu
sua verdadeira superioridade; suas mulheres, no delicioso século de Luiz XV,
haviam afeminado os homens; de lá para cá passaram para o gênero masculino e já
não valem o olhar de um artista nem a atenção de um amante!”
Mesmo com todo este arsenal de
projeções e revelações de uma realidade ainda por vir, Júlio Verne faz com que
este seu livro resvale para o lugar comum dos romances românticos. Não
esqueçamos que o homem romântico exprime sua inadequação ao mundo fugindo para
outros mundos. Por isso, talvez, a projeção de uma realidade futura vise apenas
mascarar a impossibilidade de conviver com a vida real e concreta. Assim é que
Michel, o protagonista de Paris no Século
XX, é um jovem que nasceu tarde demais. Ele sentia saudades do século XIX,
que não conheceu, e dos valores e costumes não mais existentes.
Os últimos capítulos do livro se ocupam
dos sofrimentos e da decadência de um jovem privado do convívio dos outros
homens e do amor da sua sonhada Lucy. O impotente arrebatamento do herói conduz
à morte, encontrada numa noite de frio, por entre os túmulos do cemitério.
Para um livro que começa vislumbrando o
admirável mundo novo, o fim não passa do lugar comum das narrativas
sentimentais do Romantismo. Mas, por entre o amontoado de suspiros e ais
românticos, o leitor encontra o encanto — e o enlevo — da imaginação de Júlio
Verne.
___________________________
Entre
a ficção e a ciência. Artigo crítico sobre o livro Paris no século XX, de Júlio Verne. . São Paulo, Ática, 1995, 224 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 3 jul. 95, p. 5.
|