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Um exército negro
no país dos gringos

 

Os ficcionistas do Rio Grande do Sul cada vez mais se debruçam sobre os fatos da história para reconstituir o caráter do processo de formação do seu povo. Tabajara Ruas retorna a esta vertente tão forte na literatura produzida no extremo sul com Netto perde sua alma, romance recém-lançado que alcançou duas edições em poucos meses.

Também nisto o livro se insere num fenômeno dos mais animadores no âmbito da literatura brasileira e do seu mercado editorial: a criação de focos regionais de grande densidade literária, com mercado próprio e seguro. Os gaúchos não precisam do aval dos grandes meios de comunicação do eixo Rio-São Paulo para esgotar edições e assegurar o prestígio dos seus autores. Eles têm público cativo, interessado em rever os fundamentos da sua própria cultura.

Guardadas as proporções do seu significado histórico-cultural, pode-se dizer que na literatura do Sul ocorre fenômeno parecido com o da música de massa produzida na Bahia. As proporções devem ser guardadas por que no caso da música baiana de consumo não há qualquer preocupação em refletir sobre a condição do seu povo. É verdade que a questão negra serve de fundo ao boom das bandas baianas. Mas, apenas, serve de fundo falso. As cintilações carnavalescas das vênus platinadas da vida, ou melhor, os valores e a estética das redes globais falam mais alto, com seu forte apelo comercial.

As bandas de fácil consumo pongam numa vertente que tanto Caetano quanto, naturalmente, Gil iniciaram: a da valorização do negro e do questionamento do seu lugar numa sociedade formada por setenta por cento de negros, como ocorre na capital baiana. A vertente é a mesma mas, enquanto a revolução empreendida neste aspecto pelos dois poetas da nosso música tinha objetivos definidos, a música industrial baiana pega um pano de fundo falso para construir o cenário do seu faturamento.

Diferente do que ocorre com a criação ficcional dos gaúchos, a música baiana dela se aproxima no que diz respeito à criação de um mercado independente. Temos, sem dúvida, um mercado próprio e autônomo para a música de massa, embora os compositores que investem na qualidade e no rigor pouco se beneficiem deste boom baiano.

Ainda mantendo o paralelo, observe-se que a vertente construída pelos escritores do Rio Grande do Sul valoriza toda a sua literatura, porque não se construiu um clichê, um kit (ou um kitchen) destinado ao consumo, mas foi encontrado um sentido local para o fenômeno literário.

O livro de Tabajara Ruas reúne dois momentos diversos da história: a Guerra dos Farrapos, a República do Rio Grande, presidida por Bento Gonçalves, com seus aliados separatistas e a Guerra da Tríplice Aliança, como dizem os gringos (ou a Guerra do Paraguai, como dizemos os mestiços).

O romance começa e termina com uma cena no hospital militar de Corrientes, na madrugada de 1º de julho de 1866, onde o general Netto vive suas últimas horas. A ação central se passa toda no quarto do enfermo, dando lugar a um longo flashback onde aparecem cenas vividas pelo general Netto durante a guerra separatista ou a “rebelião rio-grandense contra o Império do Brasil”.

Em 1836 o general Netto defendia a constituição de uma república independente e abolicionista. Por isso, a ele se aliaram milhares de negros que vieram a formar o 1º Corpo de Lanceiros, constituindo o grande “exército particular do general Netto”, como era chamado na corte ou na província.

Algumas cenas referentes aos voluntários deste exército são de grande densidade. O próprio tratamento dado ao preconceito racial (tão indisfarçado no país brasileiro dos gringos) é surpreendente. Tabajara Ruas compõe o seu herói como o redentor dos negros. Também na vida doméstica, Netto se torna pai adotivo de Benedito, um negrinho órfão encontrado durante os intervalos de combate.

Num diálogo com aquela que seria a sua companheira, o general Netto recebe com ironia o possível resquício de preconceito na fala da amada:

“— Por acaso não era uma criança de cor?

Netto olhou para ela.

— De cor? Bueno, cor ele tinha, logicamente. Cor negra. Ele é preto como um carvão, se é isso que vosmecê quis dizer.

— General Netto, não se faça de proselitista comigo. Eu não sou o embaixador da Inglaterra.

— Eu tenho certeza que vosmecê não é o embaixador da Inglaterra, senhorita Maria.”

Ponto a ponto, Tabajara Ruas constrói o seu livro com rigor e técnica. Sua linguagem é fluente e transparente, quando a transparência quer jogar o leitor diretamente em contato com o universo narrado. Ela se faz opaca e presente, quando quer sublinhar aspectos desta mesma realidade que, de outro modo, passariam perdidos no turbilhão dos fatos.

Escritor correto e senhor do seu ofício, Tabajara Ruas faz da precisão do dizer e do discreto emprego das estruturas narrativas instrumentos de enlevo e prazer intelectual dos seus leitores.

Por outro lado, o romance dá mostras de como um escritor criativo pode fazer de um dos personagens da história regional, e mesmo dos fatos conhecidos, motivo e tema de uma narrativa própria e plena de interesse.

É com base em fatos já tomados como matéria ficcional por outros escritores que Tabajara Ruas constrói sua narrativa, mas o aspecto, o viés do olhar, dá a cada abordagem uma nova dimensão e um novo significado. Tudo isso, permeado por um texto capaz de manter vivas a atenção e a curiosidade do leitor. Tudo isso capaz de cumprir uma das funções menos celebradas e mais importantes da literatura: entreter, dar prazer, divertir.

Quem pensa que a literatura serve apenas para ensinar, fazer refletir, elevar o leitor, vê apenas uma lado do poliedro. O prazer é a prova dos nove. Saber tem sabor, já se disse. Degustou. Quem não prova fica fora.

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Um exército negro no país dos gringos. Artigo crítico sobre o livro Netto perde sua alma, de Tabajara Ruas. Romance. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1995, 164 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 22 jan. 96, p. 7.




































 
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