Contos
do Rio Grande
Criador de mitos e de fatos que refletem
o espírito do seu povo, Roberto Bittencourt Martins é um ficcionista de
inventividade rica e um excelente artífice do texto. O painel narrativo que
constitui o livro parte de uma lenda vivenciada pelo povo de uma região de
inventos: saído do nada e correndo pelos campos surge um trem fantástico que
não precisa de trilhos para seguir sua viagem. Ele para nas estações, ou em qualquer
lugar, para recolher enfeitiçadas testemunhas que não mais retornam. As pessoas
são atraídas por uma misteriosa força, ou pela curiosidade. Enquanto o trem
fantasma percorre seu trajeto indefinido, novos acontecimentos são desfiados
como estações à margem da estrada.
O insólito, ou o mito que explica aquilo
que o discurso racional não pode explicar, é o elemento que liga a realidade
civil do leitor à realidade das personagens dos pampas do invento. Mas, mesmo
assim, cercado de qualidades indispensáveis a um bom escritor, Roberto
Bittencourt Martins não fez de Ibiamoré:
o trem fantasma o romance que poderia ser. O leitor sai das suas páginas,
às vezes grandiosas, com a sensação de algo falho, de uma construção incerta.
Ora, oscilando entre a tessitura da novela, ora anunciando o universo
romanesco.
Este livro é a segunda edição da
narrativa variada e bem urdida em torno de mitos e fatos do Rio Grande do Sul,
recriados ou inventados por um escritor poderoso e senhor do seu ofício.
Algumas histórias que constituem este painel foram premiadas em 1979 no
Concurso de Contos do Paraná e, mais tarde, o livro foi publicado com o título
atual. Nesta segunda edição, é incluído na série Novo Romance, caracterizando a
obra como o que ela parece não ser: um romance.
* * *
Sabemos que o homem pensa e conhece a
realidade a partir de classificações. Para conhecer alguma coisa, ele insere os
objetos em classes previamente constituídas e aceitas, até que seus limites
sejam ampliados ou refeitos. Desta forma, compreendemos os objetos e nos
apropriamos deles quando os inserimos em uma das categorias estabelecidas pelo
pensamento ou pelo senso comum. O juízo e o gosto são naturalmente condicionados
por esta classificação, por este confronto do novo objeto com os demais objetos
análogos. Embora esperemos que o novo objeto exista por si mesmo, nosso modo de
conhecer procura uma forma que o identifique com outros objetos da mesma classe.
Este mecanismo cognoscente é transposto
dos objetos do mundo dos homens para os objetos do mundo literário. Assim,
quando nos deparamos com um texto condicionamos a nossa recepção do mesmo à sua
inserção numa classe, numa categoria ou, se preferirem, num gênero. Lemos um
poema como sendo um poema e não como uma notícia de jornal. Assim, esperamos
encontrar nele certas formas constituídas pela tradição ou certas quebras
propostas pela dinâmica do pensamento. O mesmo ocorre com um romance. Quando
uma obre nos é apresentada como romance aceitamos os regras do gênero e
abandonamos a nossa condição civil e cotidiana para ingressarmos num universo
romanesco com suas leis e princípios. Deste modo, toda ruptura se dá dentro de
uma certa previsibilidade estrutural. Toda transgressão de uma forma tem por
limite a desagregação sem a destruição total das linhas norteadoras desta mesma
forma. Um romance tem traços que o diferenciam de uma novela ou de uma grande
crônica em torno de um universo ficcional. A leitura pressupõe encontrar no
texto elementos que permitam seguir as regras de suas formas, salvo se o
conceito de vanguarda do leitor comporta o rompimento de todos os parâmetros de
leitura. Aí, convém abandonar a nomenclatura e a classificação do texto num gênero
literário conhecido.
Ao entrarmos num mundo ficcional temos
por base as regras deste jogo, sem as quais não há jogo nenhum.
* * *
Ibiamoré:
o trem fantasma começa sugerindo ao leitor que está diante de um romance.
Os contos que constituem este conjunto de situações múltiplas buscam, aqui e
ali, alguns elos de ligação entre os episódios. É o que acontece, por exemplo,
com o universo das narrativas em torno do trem fantasma, depois ampliado para
conter narrativas onde está presente um trem qualquer. Outras vezes, o elo é
buscado através de referências a personagens de contos anteriores. No meio de
um novo conto encontramos como personagem secundário um protagonista do conto
anterior. Mas estes pequenos elos entre os mundo de cada uma das narrativas não
chega a constituir uma unidade, como ocorre na novela, por exemplo, onde um fio
condutor relaciona os episódios. Se a novela encerra uma certa linearidade de
ações, o romance é constituído pela pluralidade de situações e tramas que
concorrem para o enriquecimento da trama central. Quando uma obra não se tece a
partir de tais fios, como ver nela tal tecido? Um conjunto de narrativas, mesmo
buscando adquirir uma unicidade, pode não constituir um romance, quando seu
traçado não se aproxima das linhas gerais da estrutura romanesca. Os contos de Ibiamoré: o trem fantasma continuam
sendo contos, alguns da mais densa elaboração, enquanto outras narrativas
parecem narizes-de-cera destinados a ligar aquilo que a cera não liga.
E isto, em vez de acrescentar alguma
coisa à qualidade do rico universo ficcional constituído por Roberto
Bittencourt Martins, prejudica a sua leitura. Se o leitor conseguir isolar o
artifício de construção de um romance a partir de contos às vezes não relacionados,
perceberá estar diante de um vasto e amplo painel narrativo que pode, sem favor
nenhum, ser apontado como um dos grandes momentos da ficção gaúcha.
O poderoso engenho fabulador do nosso
autor constrói como elemento ficcional os presumíveis fatos reais que dariam
credibilidade ao astuciado. Deste modo tautológico, tudo é ficção nesta
epifania ficcional de Roberto Bittencourt Martins. O eixo temático da sua obra
é o mito de um trem fantasma correndo pelas coxilhas do Sul, sem seguir os
trilhos das estradas, mas percorrendo os escuros da noite. O leitor começa a
acreditar, pelo testemunho documental que está diante de uma lenda regional, de
um belo mito com traços universais do espírito cognoscente, mas descobre que
tanto o mito quanto as testemunhas e seus livros são criação deste ficcionista
fabuloso. Até mesmo a lenda do trem fantasma parece ser uma criação extraída do
engenho fabulador de Bittencout Martins.
A maior parte dos contos de Ibiamoré: o trem fantasma são momentos
altos da ficção sul-rio-grandense e da ficção brasileira. E este entrelaçado de
contos vale pelo romance que não se estruturou.
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Contos do Rio
Grande. Artigo crítico sobre o livro Ibiamoré:
o trem fantasma, de Roberto Bittencourt Martins. Porto Alegre, Mercado
Aberto, 1995, 420 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 28 ago. 95, p. 5.