O
CONTO
HISPANO-AMERICANO
A partir de autores como
Borges e Cortázar, o conto produzido nos países americanos de língua espanhola
ganhou dimensão internacional. O êxito destes escritores no exterior contribuiu
para a consolidação do prestígio da literatura hispano-americana. Mas o trajeto
percorrido por estes nomes, inclusive a fixação de residência na Europa, como
forma de ressonância da obra literária, foi pioneiramente tentado pelo escritor
uruguaio Horácio Quiroga (1878-1937), cuja vida intelectual está muito ligada à
Argentina.
Desconhecido do público
brasileiro, Quiroga é apontado como uma figura central do conto de língua
espanhola no nosso continente. A sua redescoberta nos países vizinhos deve-se
essencialmente à condição de artífice da narrativa, desenvolvendo o sentido de
modernidade instaurado por autores como Poe e Baudelaire.
Os nove contos que constituem
este Vozes da selva, selecionados por
Pablo Rocca, foram traduzidos por um exímio artesão do conto brasileiro, o
gaúcho Sérgio Faraco. Umbilicalmente ligado à literatura dos países vizinhos,
especialmente a uruguaia, Faraco é capaz de preservar, nas suas traduções, a
integridade do processo criativo a nível de fabulação e linguagem de um autor
como Quiroga.
Desde a primeira narrativa
do livro, “A deriva”, o leitor percebe que está diante de um contista que
retoma o gênero para transformar cada peça composta numa obra autônoma. Ou
melhor, o conto não mais é admitido como fragmento de uma narrativa maior, mas
construído como um protótipo conciso do universo. A organicidade da composição
buscada neste processo construtivo é responsável por caraterísticas que Quiroga
insere e define como intensidade,
concisão e concentração. Estas
três palavras, integrantes do vocabulário teórico do contista, são repetidas
para definir o conto moderno.
A brevidade do texto e a
unidade de ação preparam e asseguram a tensão da obra, como já ensinava Poe, ao
compor poemas e contos a partir de um projeto tão rigoroso como o seguido pelo
engenheiro ao trabalhar com estruturas. Quiroga não admite o arrebatamento do
contista pelo personagem ou pela deriva da trama, mas exige a vigilância do autor,
como demiurgo e construtor deste universo ficcional. O controle da ação não lhe
escapa e os resultados obtidos são previstos pela técnica narrativa.
Mesmo em contos publicados
no começo do século, Quiroga apresenta o rigor do artesão consciente. A crítica
já relacionou este traço do contista às atividades do homem, que trabalhou como
inventor e mecânico. Deste modo, a domínio da mecânica e o encanto do invento
estão presentes em todos os nove contos de Vozes
da selva.
Júlio Cortázar, no ensaio
“Do conto breve e seus arredores”, muito difundido no Brasil desde que foi
traduzido no livro Valise de cronópio,
parte do processo de construção de Horácio Quiroga para falar da sua própria
técnica e para formular uma teoria do conto. O seu conceito de esfericidade pode ser encontrado na
exigência de unidade instaurada por Quiroga ao construir o conto como se este
constituísse um microcosmo. Um modelo conciso e perfeito de universo.
Não é demais afirmar que a
leitura dos contos de Quiroga, além do prazer proporcionado pelas suas
histórias, serve como uma verdadeira aula de técnica literária. Seus contos
podem ser tomados, como de fato o foram por muitos escritores
hispano-americanos do nosso século, como materiais de laboratório de criação.
Mecânico e inventor, Quiroga
não limitou sua temática ao que chamava de “contos do mato”, transfigurando a
vivência pessoal em experiência social, mas inaugurou na narrativa de temática
urbana o realismo fantástico. Foi na década de vinte, como demonstram os dois
últimos contos do livro, “O espectro” e “Uma noite no Éden”, que Horácio
Quiroga, ao se deslocar da conhecida ambientação rural para o mundo urbano,
concebeu a realidade deste mundo como ultrapassando os umbrais do realismo
lógico. Daí o seu realismo fantástico que, coincidentemente, vai se constituir
no mais rico filão da narrativa dos países americanos de língua espanhola.
Borges, Garcia Marques, Cortázar...
Dos nove contos escolhidos,
entre os vários livros do autor para compor Vozes
da selva, sete são de temática regional. São contos de mato, como dizia
Quiroga. Mas este contista ultrapassa o projeto dos regionalizas surgidos
depois.
Convém observar que as suas
primeiras publicações, posteriormente reunidas em livro, incluem contos, poemas
e artigos aparecidos entre 1897 e 1903. Este é o chamado período modernista de
Quiroga, quando o autor procura absorver o conceito de modernidade, ainda
distante do trabalho dos escritores do nosso continente. É a partir daí,
talvez, que ele se embebe do espírito decadentista responsável pelo fim
semi-trágico dos seus contos. O decadentismo tão intimamente ajustado ao
ambiente regional.
Mas o seu regionalismo não
se confunde com o folclórico, com o pitoresco ingênuo. Deste já, ele percebe:
quanto mais regional mais universal; e caminha firme nesta direção. Isto se
reflete no seu léxico. Ao contrário de tentar criar a ambientação com um
vocabulário regionalista, desconhecido e inacessível ao leitor de outros
lugares, Quiroga também usa de um artifício: a técnica; buscando uma ou duas
expressões cuidadosamente escolhidas, ou um torneio frasal que, sem obscurecer
o sentido do texto, insere o leitor no ambiente pretendido.
A tentação de qualquer
escritor regionalista é ceder ao rico acervo lexical do ambiente, produzindo o
texto numa língua ou num dialeto desconhecidos do leitor. Já o artista que
enfrenta seu ofício com técnica e criatividade, encontra outra solução:
consegue condensar o pitoresco, o típico, o regional em poucos elementos
deslocados no contexto da sua própria linguagem. É este deslocamento que também
remete o leitor a uma outra realidade — a realidade da narrativa.
Por tudo isto é que repito:
ler Horácio Quiroga é motivo de prazer e deleite para o leitor comum; fonte de
aprendizagem e percepção crítica para o escritor ou para o estudioso.
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Horácio Quiroga. Vozes da Selva; nove contos escolhidos.
Tradução de Sérgio Faraco. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1994. | O conto
hispano-americano (artigo de crítica literária). Coluna “Leitura Crítica” do jornal A
Tarde, Salvador, 12 dez. 94, p. 5.