Ciência
e Sociedade
O físico Albert Einstein, apesar de ter sido um dos
cientistas mais importantes do nosso século, não criou uma barreira entre o seu
trabalho e a sua condição de ser social. Ele procurava dar igual importância,
por um lado, ao labor necessariamente solitário e desvinculado das
circunstâncias imediatas e, por outro lado, a constante busca de inserção da
reflexão pessoal no lugar e no momento vividos.
Assim, sentiu-se no dever de compreender as questões
básicas das ciências humanas para, enquanto homem, apresentar a sua visão do
mundo circundante. Até aí nada torna as idéias de Einstein, quando elas
extrapolam as fronteiras da sua disciplina, mais importantes do que a de outras
pessoas. Ocorre, porém, que o rigor científico e a profunda inteligência do
autor fazem com que ele trate de questões alheias à física não apenas como um
simples cidadão, mas como um estudioso perspicaz. A sua reflexão crítica
aproxima-se da dos filósofos e então temos que ceder ao velho mito da genialidade
do autor da teoria da relatividade.
É por isso que
estes Escritos da Maturidade, de
Albert Einstein, – mesmo tratando de questões que vão dos fundamentos da física
teórica até a religião, passando pelas questões raciais, pela educação e pelos
problemas sociais, incluindo-se aí a economia – longe de parecerem apontamentos
caótica e impropriamente reunidos, constituem parte substancial do pensamento
de uma das inteligências mais brilhantes deste século. E do seu esforço de
sistematizar a experiência diversa, possibilitando o entendimento mais preciso.
* * *
Quando aproximo o seu método de abordagem e compreensão
crítica dos problemas circundantes, da atitude do filósofo, é porque a reflexão
de Einstein, mesmo em circunstâncias corriqueiras, é sempre a de um estudioso,
de um cientista. A compreensão rigorosa dos assuntos tratados permite a sua
inserção num sistema mais amplo.
A sua definição de ciência cria alguma identidade entre
as ciências da natureza e as da cultura, as chamadas ciências humanas e
sociais, incluindo-se aí o trabalho da filosofia.
Para ele, “ciência é o esforço de reunir, através do
pensamento sistemático, os fenômenos perceptíveis do mundo, numa associação a
mais completa possível”. E para reforçar esta definição, a ciência é
caracterizada como a “tentativa de fazer a diversidade caótica de nossa
experiência sensorial corresponder a um sistema de pensamento logicamente
uniforme”. Creio que a epistemologia não propõe reparos a tal conceito.
* * *
Se tomarmos as diversas intervenções de Einstein que
constituem estes Escritos da Maturidade,
veremos o quando preciso é o seu enfoque dos diversos objetos. Quando ele fala,
por exemplo, de questões como “A linguagem comum da ciência”, título de uma
exposição radiofônica depois publicada em Advancement
of Science, procura sustentar suas idéias no saber da linguística. Assim
não hesitaríamos em recomendar a sua leitura a um estudante de Linguística,
porque o enfoque de Einstein nos permite vislumbrar o fundamento filosófico da
compreensão da linguagem, que afinal de contas permitiu a Ferdinand de Saussure
sistematizar a linguística moderna.
Este livro de Albert Einstein é dirigido, portanto, a
todo e qualquer leitor inteligente. Se mais de cem páginas são dedicadas à
física, outras tantas tratam de disciplinas humanísticas ou, ainda, de fatos do
cotidiano que interferiram na vida do autor e sobre os quais ele quis registrar
as suas idéias. A sua condição de judeu – e de emigrante num período de
conflitos e guerras – fez com que os problemas raciais merecessem especial
atenção.
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E como não poderia deixar de ser – um judeu sempre se
preocupa com a economia – Einstein justifica a sua intromissão em problemas das
ciências econômicas. Assim é que surge o artigo “Por que o socialismo?”, que
ganha especial interesse nos nossos dias, quando a economia de mercado e suas
leis baseadas exclusivamente no lucro triunfam de modo absoluto. Com o fim da
ditadura comunista do leste europeu, as pessoas esqueceram a necessidade da
sociedade dispor de instrumentos capazes de coibir a exploração do homem pela
usura do capital. É como se os erros de implantação do socialismo praticados
pelo desvario de uma ditadura do proletariado autorizassem aos detentores do
capital liquidar as classes trabalhadoras, reduzindo-as a escravos da nova era.
Os políticos identificam o aumento de privilégios
concedidos aos grandes grupos econômicos com a noção de modernidade. Assim todo
e qualquer instrumento social de defesa do bem-estar da maioria é identificado
com o atraso e a salvaguarda dos interesses da minoria é apontada como
fundamento do liberalismo mais moderno.
Einstein nos lembra que os animais dispõem de instintos
rigidamente observados e de traços hereditários capazes de assegurar o
atendimento das necessidades básicas, enquanto os homens não conseguem atrelar
o seu desenvolvimento social às necessidades biológicas. Assim, o ser humano é
mais dependente de uma organização social fundada na convenção e nas leis de
proteção ao indivíduo.
Se a sociedade, como um todo, não dispuser de meios para
coibir a ação predadora de indivíduos ou grupos organizados, a vida e a
dignidade humana estarão ameaçadas. A força de indivíduos em sociedades animais
é colocada a serviço da espécie, mas esta mesmo força no caso humano é
utilizada para a escravização do mais fraco. A história demonstra o quanto o
homem é mais cruel e menos solidário que os outros animais.
Assim é que Einstein diz que “a anarquia econômica da
sociedade capitalista tal como ela existe hoje é a verdadeira fonte do mal.
Vemos diante de nós uma imensa comunidade de produtores cujos membros lutam
para despojar uns aos outros dos frutos do seu trabalho – não pela força e sim
pelo fiel cumprimento de normas legalmente estabelecidas.” O capital tende a se
concentrar cada vez mais em poucas mãos e o enorme poder desta oligarquia,
quando incentivado pela debilitação econômica do estado, não pode ser
controlado pela sociedade democraticamente organizada.
As reflexões de Einstein nos levam a identificar o beco
sem saída no qual fomos lançados, pelo crescente poder dos grupos e
oligopólios, com a economia do mundo medieval, quando os senhores feudais
impossibilitavam a consciência e as ações nacionais.
“A produção é orientada para o lucro, não para o uso”, e
o progresso tecnológico “em vez de aliviar a carga de trabalho para todos,
resulta em maior desemprego”. Por isso ele defende o que chama de economia
planejada, com o ajuste da produção às necessidades da comunidade.
Talvez as reflexões de um homem como Alberto Einstein
sejam mais inteligentes do que a dos representantes dos oligopólios...
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Ciência e sociedade. Artigo crítico sobre Escritos da maturidade, de Albert
Einstein. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 304 p. Coluna “Leitura Crítica” do
jornal A Tarde, Salvador, 13 mar. 95,
p. 5.
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