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CALMON, EPIFANIA
DA MEMÓRIA Além
do testemunho escrito do seu labor e da sua inteligência, deixado numa obra
vasta e diversificada, Pedro Calmon tinha facilidade de, imediatamente, ganhar
a admiração dos seus interlocutores, graças ao raciocínio rápido e à memória
privilegiada. Ainda
jovem, conquistou o respeito do mundo intelectual da então capital da República,
o Rio de Janeiro, entrando para Academia Brasileira, em torno dos trinta anos
de idade, e sendo investido em importantes funções, como as de deputado,
presidente da Academia, reitor da Universidade do Brasil e ministro da
Educação. Além
da memória privilegiada, que lhe permitia improvisar discursos e conferências
que se tornaram memoráveis, não apenas pelo dom da palavra, mas pela facilidade
de concatenar os dados pertinentes ao assunto tratado, o alegre humor verbal de
Pedro Calmon desfazia mal-entendidos e dava às situações formais um discreto
traço de descontração. Tudo isso sem perda da dignidade da situação, dignidade
esta que era ressaltada ou, até mesmo, imposta pela postura aristocrática
incorporada ao seu modo de ser. Pedro
Calmon guardava em si muito dos traços dos antepassados que aparecem com
destaque na vida palaciana do Império. Não por acaso, as primeiras páginas
deste livro de memória dão relevo à nobreza dos seus avoengos. Assim,
entendemos melhor como, ao longo das gerações, o gesto natural de autoridade
persiste e ressalta. Uma autoridade que não parecia imposta, porque distante da
arrogância, mas naturalmente aceita. Mesmo
quando usava a presteza do raciocínio em socorro dos seus pontos de vista,
conseguia simultaneamente desarmar e cativar o adversário, pelo caráter, ao
mesmo tempo, cerimonioso e amistoso das suas bem humoradas tiradas. * * * Tornou-se
antológica — e inúmeras vezes citada — a sua intervenção quando, em momento de
turbulência na Capital do País, a polícia estava prestes a invadir a Universidade
para prender um estudante. Abrindo os braços para impedir a passagem do oficial
que comandava o contingente, Pedro Calmon, investido menos da autoridade de
Reitor e mais da autoridade nata do seu caráter, falou em tom firme porém
amigável: —
“Aqui só se entra com exame vestibular”. A
firmeza sem ostentação e o bom humor da intervenção descontraíram os ânimos. Em
outra ocasião, na sisuda nação portuguesa, Calmon e Josué Montello participavam
da cerimônia de inscrição de uma lápide assinalando a presença dos restos
mortais de Pedro Álvares Cabral. O ministro português que presidia o ato,
chamou atenção dos brasileiros para o texto que não lhe parecia correto do
ponto de vista vernacular. A
uma possível deselegância, ele sabia responder de modo irretorquível, mas com
extrema elegância. Conta Josué Montello que a resposta de Pedro Calmon foi
imediata (e fulminante): —
Agora, ministro, passou a ser lapidar. Homem
público e intelectual presente a quase todos os grandes momentos da vida
brasileira do seu tempo, estas memórias de Pedro Calmon, em muitas páginas,
abandonam o recôndito da vida privada para ceder lugar ao registro da história
recente. Assim,
a imaginação que reconstitui os sentimentos através da prosa amena recua diante
dos fatos da História. O autor quis sintetizar em quatrocentas páginas o
trajeto pessoal de quase um século e os fatos da vida nacional a que assistiu.
É verdade que este desejo de síntese prejudica o sabor da conversa, que é
interrompida pelo desenrolar dos acontecimentos. Muita coisa aparece
telegraficamente registrada, sem que o leitor tivesse tempo de percorrer o
caminho emotivo da evocação pela lembrança. Como
passam ligeiras nas páginas destas Memórias, para ceder lugar ao turbilhão dos
fatos, as lembranças não param para cumprimentar o leitor. Seguem o fio do
discurso de Pedro Calmon. Mas neste gênero de escrita, onde as recordações
abrem os cofres do sentimento guardado, autor e leitor querem-se encontrar num
espaço compartilhado. —
“Fica-te aí, parada na memória”. O
verso de Carlos Anysio Melhor traduz o desejo. * * * Embora
tenha escrito sobre os mais diversos assuntos, desde o direito, a literatura, a
política, a educação etc., o que lhe confere a condição de um dos últimos
polígrafos do nosso tempo de especificidades, a história foi o objeto de
especial dedicação de Pedro Calmon. Daí, talvez, o fato de, nestas memórias,
ele não ceder à tentação do devaneio e da efusão pessoal, para dar lugar à
inserção do trajeto da sua vida no bojo dos acontecimentos nacionais. É
como se as experiências vividas servissem apenas de pretexto para o relato de
acontecimentos cruciais da história do Brasil. Por outro lado, a vida de Pedro
Calmon, enquanto homem público que foi, confunde-se, de fato, com a vida
nacional. Na
sua existência plena de ocorrências relevantes, a memória prodigiosa retinha os
menores acontecimentos. Com surpresa, encontro neste livro uma referência à
visita à minha cidade do então candidato a governador. Quando Pedro Calmon
disputava com Antonio Balbino o governo da Bahia, fazendo seus comícios pelas
várias regiões do estado, um menino do interior passou pela barreira dos homens
de paletó e gravata e chegou junto ao orador principal, que já ia falar: —
Dr. Pedro, eu também quero fazer um discurso. Pela
envaidecimento que a lembrança do fato me traz, peço permissão aos leitores
desta coluna para a transcrição do pequeno trecho que esclarece a emotividade e
a intromissão pessoal: “Em Maragogipe, um pequeno de seis anos puxou-me pelo
paletó. Ergui-o no palanque e ele fez o seu discurso: era Cid Seixas Filho.” Mesmo
um fato que era lembrado apenas pelo incerto protagonista de uma cidadezinha do
interior não escapa à memória de Pedro Calmon, tão precisa para os grandes acontecimentos
quanto para coisas pitorescas. É este uso prodigioso da memória que deu um colorido
próprio e caracterizou a sua escrita e as suas intervenções de improviso. Enquanto
alguns dos seus leitores querem encontrar tão somente o autor de obras em que a
elegância da linguagem e o fulgor da inteligência deixaram marca, outros, os admiradores
do homem público, procuram rastrear o trajeto do político, do administrador, do
educador, da pessoa humana. Nestas Memórias
há um pouco do muito que foi e do que fez Pedro Calmon. _____________________ Calmon,
epifania da memória. Artigo crítico sobre o livro Memórias, de Pedro Calmon. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1995,
440 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A
Tarde, Salvador, 8 jan. 96, p. 7. |
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