DO
ARTESANATO À ARTE DA ESCRITA
Madre
Marie é o primeiro livro de Constantino Gregório Netto. Como o autor
guardou para a maturidade as histórias que trazia para contar, este livro é o
início de um trabalho que, por certo, dará outros resultados.
A narrativa começa em nossos dias, com
uma romaria em volta de uma velha cruz de madeira, perdida entre a vegetação,
no fim da costa de Itapuã; mas a ação do livro se desenvolve nos fins do século
passado. A cidade francesa de Marselha é o primeiro cenário da narrativa, que
se estende pelo convés de um cargueiro até aportar no Recife.
Os engenhos e canaviais substituem o
colégio de freiras onde a protagonista fez seus estudos. Mudando de cenário, o
narrador situa os acontecimentos nos confins das praias de Itapuã, que por
volta de 1900 ainda era um lugar deserto e distante da pequena vila de
pescadores que deu origem ao atual bairro do mesmo nome. É aí que a narrativa
encontra o seu desfecho.
O motivo central e, praticamente, único
constituinte do tema, é a história de uma família francesa. Os Deneville
Exupéry são financeiramente arruinados em Marselha e terminam seus dias no
Brasil, entre Recife e Salvador. A menina Marie, protagonista do livro vive
experiências amorosas as mais diversas. Uma forte tempestade de amor, desejo e
sexo desencadeia cenas de ódio e violência que levam Marie a se confinar num
convento, como ocorria naquela época. A vida religiosa representava não apenas
uma esperança de tranquilidade como também uma fuga das circunstâncias
desfavoráveis. O século dezenove via no convento a solução de vários conflitos
irresolvidos, daí a título Madre Marie,
que se explicará pela leitura.
Graças à reunião de condimentos típicos
do folhetim romanesco, o leitor menos exigente chega ao fim da narrativa mantendo
o interesse pelos acontecimentos narrados, mas o leitor habituado a bons
romances encontra pontos marcados por uma incipiente fragilidade. Isto
evidencia a condição de livro de estréia de um autor ainda não experiente. Como
Constantino Gregório Netto já anuncia que pretende se dedicar com determinação
ao trabalho da escrita, conforme se lê na notícia biográfica da orelha do
livro, convém a um leitor investido da função crítica, juntar às naturais
restrições, a indicação de caminhos possíveis.
O texto nos leva a supor uma certa
predileção do autor por romances perpassados por ingredientes bem a gosto do
grande público: cenas de sexo, crimes e alguns acontecimentos insólitos. Assim,
Constantino pretende se afirmar escritor dosando este kit de artefatos ao contar uma história. Mas a preocupação com o
artesanato da escrita, com o bem construir a sua obra, não se evidencia na
leitura do romance. Por isso, o livro contém momentos de ingenuidade
fabulativa. O desejo de prender o leitor com acontecimentos ruidosos permite
situações inverossímeis. Certos acontecimentos parecem forçados, ditados não
pela própria ação dos personagens mas pela intervenção de um narrador
interessado em agradar.
Milhares de livros escritos para o
grande público são marcados por esta inconsistência interna. Os autores que
produzem em massa, quase sempre enviam os originais para serem comercializados
pela editora sem se dar ao trabalho de uma cuidadosa reflexão sobre o que
acabaram de escrever. Assim, os tropeços e inverossimilhanças passam a fazer
parte do gênero.
O escritor em fase de aprendizagem que
leva a sério as fórmulas dos fabricantes de sucesso fácil corre o risco de
herdar também estes defeitos, juntamente a uma virtude: agilidade da trama.
Para alguém que se lança no mar de
histórias e astuciados, a melhor escola de escritores tem como mestres os
clássicos de todos os tempos. Assim, a leitura atenta de um Machado de Assis,
para apreender a sutileza de construção das tramas é uma lição de enorme valor.
Convém a todo autor que tem um projeto
literário a ser seguido, estudar na grande e abstrata escola dos bom
escritores. Reler suas obras fundamentais. Primeiro, por puro deleite, depois
com a senso de observação de Sherlock Holmes.
Mas a leitura de um Graciliano Ramos,
por exemplo, é fundamental para que o novo escritor aprenda os encantos de um
estilo seco e preciso, porém altamente significativo. Com mestre Graça podemos
aprender que a escrita não foi feita para molhar a página de derramamentos. Diz
melhor quem diz sem jogar palavras fora. A economia do texto é fundamental.
O tratamento exato e irretocável dos
motivos que constituem a trama também pode ser buscado na obra de Graciliano.
Aí, por certo, Constantino Gregório Netto terá muito o que aprender.
Se o texto do autor de Madre Marie carece de maior domínio da
arte da escrita, Machado e Graciliano são mestres insubstituíveis. Assim, a
pontuação que persegue o narrador por todo o livro passará a ser um veículo
expressivo a serviço de outros ditos e outros sentidos.
A capacidade de contar uma história
simples e interessante, Constantino já traz consigo. Resta-lhe aprimorar os
instrumentos do seu novo ofício. E para isto a receita é só uma, como diria o
velho criador de São Bernardo:
trabalho, trabalho, trabalho.
Nos dados biográficos do autor de Madre Marie lemos que ele se aposentou relativamente
cedo, ainda na casa dos cinquenta anos, para se dedicar à literatura. É necessário
a esta dedicação que o autor não esqueça que toda arte se sustenta no artesanato,
isto é, no domínio da técnica de bem fazer. Ninguém pode ser um artista, na
plena acepção da palavra, sem ser um artesão do seu ofício. O artesanato a
gente aprende com trabalho e seguindo a lição dos mestres – daqueles que fazem
melhor –, a arte, ah!, esta procura a gente, quanto a gente está pronto para
recebê-la. Antes disto a busca é inútil, as musas de que falavam os antigos são
como os duendes ou os demiurgos. Caprichosas, elas só aparecem aos escolhidos.
E o meio de alguém ser visitado pelas musas é um só, embora com vários nomes:
dedicação, trabalho, esforço.
Com isso, Constantino Gregório Neto
alcançará, sem dúvidas, melhores resultados nos seus próximos livros. Contar
uma história ele sabe e gosta de fazer. Contar com engenho e arte é o desafio
que tem pela frente, após uma estréia promissora.
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Do artesanato à arte da escrita. Artigo crítico
sobre o livro Madre Marie, de
Constantino Gregório Netto. Romance. Salvador, 1995, 186 p. Coluna “Leitura
Crítica” do jornal A Tarde, Salvador,
10 abr. 95, p. 7.
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