AS MIL E UMA
JANELAS DE MUELLER
Mil janelas se acendem aos olhos indiscretos de um atirador
solitário. A mira telescópica de uma sofisticada arma tanto serve para matar
quando para manter ereto o desejo sexual de um solitário voyer. Depois de algumas cenas de sexo, a polícia encontra o corpo
de um homem morto a bala, próximo à janela do seu apartamento.
O fim da história o leitor já sabe. O narrador anuncia nas
primeiras linhas do livro. O desafio é manter viva a atenção diante de uma
outra morte anunciada.
* * *
As Edições Macunaíma, criadas há muitos anos por um grupo de
então jovens artistas, como Florisvaldo Matos, Calasans Neto e Myriam Fraga,
funciona como uma editora amadorística. Isto é: com amor ao trabalho de
publicação. Lança seus títulos sem regularidade e sem uma estrutura comercial
de mercado. A marca é uma só: a qualidade do trabalho gráfico e do texto. O
gravador Calasans Neto é o ilustrador constante dos seus livros, o que
transforma a Macunaíma hoje numa editora de arte da mais alta categoria, embora
o processo de edição e comercialização dos livros continue sendo feito como antes:
por amor à arte, para repetir, intencionalmente, uma expressão pré-moldada.
Vale lembrar que a Macunaíma tem seu nome associado, entre os
autores publicados, a alguns dos nossos melhores escritores. O poeta Vinícius
de Morais, no período em que viveu na Bahia, também foi seduzido pela proposta
despojada desta singular “editora do autor”, tendo aqui publicado alguns
livros.
Depois de anos sem nada editar, a Macunaíma nos apresenta um
lançamento, bem no fim do ano: A casa de
mil janelas, de Lourenço Mueller. Ao contrário da feição artesanal dos
demais livros da editora, este volume apresenta um bem cuidado projeto
gráfico-industrial, de Ivan Kalil e Beto Cerqueira, usando as ilustrações de
Calasans Neto de modo equilibrado, com o intuito de valorizar o trabalho do
artista. Do ponto de vista gráfico, este livro inaugura uma nova tendência na
Macunaíma.
* * *
A casa de mil janelas,
de Lourenço Mueller, é uma narrativa breve e fácil de ler. Capaz de agradar ao
grande público. Dois ingredientes altamente consumidos pelas mais diversas
classes de leitores funcionam como esteios de sustentação da narrativa: sexo e
crime. Desde os romances policiais aos filmes do velho James Bond, a fórmula
amplamente usada pela cultura de massa tem público cativo.
Sabemos que, durante muito tempo, leitores e críticos mais
exigentes faziam sérias restrições a esta fôrma literária. Mas, deste algum
tempo, a necessidade de reencontrar o prazer do texto, reclamado por Roland
Barthes, fez com que os leitores cultos passassem a se interessar pela novela
policial.
O golpe de misericórdia no preconceito contra a cultura de
massa veio das mãos de Umberto Eco. Esse autor, que nos seus eruditos estudos
críticos tomava como objeto kitshen
como filmes e novelas policiais, aventuras de Superman etc., chegou a forjar a
dicotomia apocalípticos e integrados, título de um dos seus livros
de ensaios, para analisar a resistência dos intelectuais a uma inevitável
realidade do mundo contemporâneo: a contaminação da cultura erudita pela
cultura de massa.
Depois de examinar este fenômeno, Eco deu ao mundo um exemplo
prático notável das suas formulações teóricas: o livro O nome da rosa. Situado no século treze e envolvendo a mais
intrincada erudição, o livro se sustenta na fôrma do romance policial.
Tornou-se logo um best seller e fez
com que o nome do filósofo e crítico Umberto Eco transpusesse os limites das
escolas de letras, onde tinha seu público cativo.
É, portanto, confortavelmente amparado por estes fatos que
Lourenço Mueller publica seu livro de estreia. Embora vagamente classificado,
na ficha catalográfica, como “romance-ficção”, trata-se de uma pequena e ágil
novela policial. Apesar de ser um livro de um iniciante, o leitor está diante
de um escritor que sabe urdir uma trama e contá-la de modo adequado.
Na sua brevidade, a narrativa mantém a curiosidade de
quem lê: comecei a folhear o livro ao anoitecer e só parei ao chegar à última
página, na hora de dormir. Este dado, aparentemente de exclusivo interesse
pessoal, deve ser mantido num comentário impessoal, porque serve para
exemplificar a postura de um leitor diante das mil e uma janelas abertas por
Lourenço Mueller.
As mil primeiras janelas são as da cidade-ficção da sua
história. Uma janela a mais é aberta pelo seu engenho de contador de histórias:
aquela que liga às mil janelas dominadas pelo personagem com a janela da
curiosidade mantida viva pelo fruidor do livro.
A régua e o compasso para traçar seu caminho como escritor,
Lourenço Mueller já tem: a medida de uma história com ingredientes sempre
vivos. Resta agora adicionar a esta técnica primeira a iluminação de uma
linguagem mais inventiva, ou a construção de relâmpagos imprevistos no claro
céu da sensibilidade.
___________________
Lourenço Mueller. A Casa de Mil Janelas; romance.
Salvador, Macunaíma, 1994. | As mil e uma janelas de Mueller (artigo de crítica
literária). Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 19 dez.
94, p. 5.