DANDARA,
UMA UTOPIA
DA LIBERDADE
Janaína Amado. Dandara;
romance. São Paulo, Maltese,
1994.
Dandara, de
Janaína Amado, entrelaça duas histórias para compor o universo romanesco: o
destino individual de um garimpeiro-lobisomem, que se apaixona por uma filha de
escravos, e a utopia coletiva da liberdade, vivida por um quilombo perdido em
algum lugar do sertão. O eixo em torno do qual o livro se desenvolve é o velho
tema do amor impossível, encarnado por um lobisomem e uma quilombola. Dito a
frio, para quem está de fora da trama do romance, o livro pode parecer sem
grande interesse, mas dito pela escrita de Janaína Amado, não só o pulsar da
cidadela utópica de Quibano, como também as incríveis peripécias de um
lobisomem, ganham corpo e interesse.
O tecer da trama e o
esgueirar-se da escrita ficcional são dominados por esta escritora que faz sua
estréia de forma deliciosa para o leitor. Dandara
é um livro cuja leitura, uma vez iniciada, não é interrompida, porque o leitor
segue com interesse e prazer seus descaminhos.
Mas, em se tratando de um
estréia no romance, antes de outros comentários sobre a obra, o leitor pode
querer saber quem é Janaína Amado. A autora tem vários livros publicados na
área de História, disciplina da qual é professora titular na Universidade de
Brasília. Nascida em Salvador, é filha de uma poeta pouco conhecida, porém
fascinante, Jacinta Passos, e do escritor James Amado. Tendo seguido carreira
acadêmica na área de História, Janaína fez-se doutora na especialidade e
publicou livros como Conflito social no
Brasil, pela Símbolo, em 1978; Navegar
é preciso, Atual, 1989; Colombo e a América, Atual 1992; No tempo das
caravelas, Contexto, 1993; História de Goiás
em documentos, Universidade Federal de Goiás, 1994; tendo a sair o livro Passando dos limites: A
interdisciplinaridade nas ciências humanas.
O realismo de Dandara é
costurado com o fantástico, já imposto por um dos protagonistas do livro, Pedro
Lobisomem, extraído da imaginação romanesca e das velhas lendas orais que
fascinam crianças e adultos do interior do Brasil. Desde esta escolha, Dandara
começa a buscar um caminho de diálogos intertextuais, estabelecendo falas e
ressonância do imaginário brasileiro. Mas, ao dialogar com as lendas e mitos da
nossa gente, o livro abre passagem para um outro diálogo intertextual, com
versos de canções populares, personagens da literatura etc.
No segundo capítulo, onde
tomamos contato com o universo da cidade de Iagos, ficcionalmente situada em
qualquer lugar do Brasil do século XVIII, a sua população é constituída também
por figuras humanas que são nossos velhos conhecidos, de ler, de ouvir contar
ou de assistir:
– “De todas as ruelas que
desembocam na Praça do Poeta, vinha descendo uma multidão animada, tagarela:
Manuel Verdureiro, Sargento Getúlio, o menino Miguilim, Joana-Peito-de-Pomba,
Padre Amado, Pedro Pedreiro, Dorotéia Cajazeiras, os gêmeos Crispim e
Crispiniano... O povo de Iagos, desde a véspera trancado dentro das casas,
iniciava mais um dia.”
Depois destas aparições
inesperadas, a gente fica a espreita de outros conhecidos que, como Godot, se
inscrevem na ausência. Esperamos ainda ver outras gentes, mas elas ficam por
aí, sem dar de cara. Pode-se mesmo dizer que Janaína Amado é uma ficcionista
estreante que, aqui e ali, brinca com o romance, como os veteranos sabem
brincar. Talvez a sua proximidade com a construção do texto histórico,
narrativa verdadeira, mas necessariamente bem urdida, confira a Janaína uma
certa intimidade com outras histórias.
Aqui, recuperamos as
informações sobre a autora, que, antes de seguir as trilhas da ficção, escreveu
alguns livros de investigação historiográfica.
Sem nenhum intuito de pseudo
erudição, lembro a conhecida passagem da Poética de Aristóteles, na qual a
história e a literatura são tomadas como referências contíguas mas antagônicas.
A história trata do verdadeiro, do particular, daquilo que aconteceu. A
literatura se ocupa do verossímil, do universal, do que poderia acontecer. Os
personagens da história são situados e datados, homens que teriam existido e
cujos feitos transcorreram num tempo e num lugar determinados; enquanto os
personagens poéticos, quer de um velho poema épico, quer de um romance
contemporâneo, têm seu tempo e o seu lugar situados em qualquer ponto que a
imaginação alcance.
É precisamente isto que
Janaína Amado faz no seu romance Dandara.
Como historiadora, bem que poderia ir buscar no acontecimento investigado o seu
tema favorito, mas preferiu outra direção. Ao abandonar o previsível caminho do
romance histórico, preferiu romper com o verdadeiro e construir uma
verossimilhança fantástica, inverossímil portanto. Radicaliza, assim, a
dicotomia aristotélica e afirma-se como ficcionista sem querer dever à
História. Mas não pode deixar de fincar nesta experiência a sua nova
construção.
Em outros termos, mesmo
desvinculando radicalmente o seu romance da sua condição de historiadora,
Janaína Amado traz para a literatura uma bagagem incorporada nas suas viagens
pela investigação historiográfica. Se, por um lado, a linguagem da autora, ou a
tessitura do discurso, demonstra o exercício da narrativa – que, mesmo não
sendo narrativa de ficção, é uma narrativa que visa ao estabelecimento do
universo de uma história –, por outro lado, ao se fixar numa época, o século
XVIII, a autora deixa transparecer sua formação. Mas novamente aí ela dá o
salto: Dandara não é romance de
época. Assim como a cidade de Iagos se situa em qualquer lugar do país, a ação
pode transcorrer em qualquer tempo, desde que compreendido numa faixa em que os
quilombos se desenvolveram.
Janaína Amado apaga qualquer
ligação com o verdadeiro, assentando sua criação na mais densa floresta do
verossímil. No mais, é um romance capaz de prender o leitor pelas suas
peripécias, ao tempo em que revela a consciência do trabalho de criação.